267 carris

Entra o vagabundo no autocarro que não costumo apanhar. Dou por ele porque fala alto. Começa a cumprimentar cada um dos passageiros. Sou talvez a terceira ou a quarta. Estende-me a mão. Reparo se está limpa (e está limpa) antes de lhe dar a minha para o cumprimento. Os meus olhos sobem-lhe pelo braço até ao rosto. A cara é disforme. Os seus olhos parecem olhar cada um para seu lado, dando-lhe um certo ar de sapo. Algures, ali no meio, na bissectriz das duas perspectivas estarei eu.

“ò menina, sabe que animal é que anda com as patas na cabeça?”

“não sei, não sei.”

“é o piolho.”

E a minha própria gargalhada surpreende-me. Depois continua, dando atenção e adivinha personalizada a cada velha, cada carteiro, cada senhora empertigada que ali vai, sentada na sua vida, olhando a chuva a cair cada vez há mais dias, e já sem esperanças de melhoras. E de cada vez o autocarro ri-se mais, até se rir por inteiro, agarrado à barriga, já sem perceber as travagens e as ultrapassagens, somente a rir e a dar atenção a um homem disforme que tirou o dia para nos fazer rir a nós.
Depois ele, lá recolhe as moedas e ainda nos diz para darmos menores que aquelas serão muito grandes e devem fazer-nos falta. E conta mais anedotas como bónus. E depois sai e vai à sua vida. E eu caio em mim e dá-me vontade de chorar apesar da boca ainda se rir e de o homem me ter tornado o dia mais feliz.

Comentários

Mensagens populares